domingo, 14 de fevereiro de 2021

O que é a escrita

 


Escrever pode ser aquilo que falta pra engolir aquela palavra que não desceu direito. Um gole de água quando a sede está muito forte e o próximo copo fresco parece estar tão distante, a casa a sete quadras e estamos na pandemia - não vá comprar água por aí e dar bobeira, não vá morrer pelas esquinas por não aguentar sete quadras. 

Escrever pode ser a transição suave entre um pensamento leve e uma visão mais dura sobre a realidade que bate à porta. Pode, também, ser um pequeno intervalo entre tomar um café, respirar um ar semi-fresco do quinto andar de uma capital e ir para o próximo tópico da lista de tarefas do trabalho. 

Pode ser um soluço que aparece depois de engolir rápido demais o último gole de coca-cola. Atravessar, engolir, passar por. Escrever é um impulso daqueles necessários pra seguir em frente, não travar na lombada, não bater na marquise, não cair do meio-fio.

A escrita é um pedaço de tecido que dá pra colocar no rasgo de uma blusa e ela nem vai precisar ser aposentada, apesar de não poder ser usada em grandes eventos sociais. 

Escrever é pegar um pouquinho do que sobra ali na geladeira e montar um sanduíche que, surpreendentemente, ficou bem gostoso e talvez você nunca consiga repetir esse feito pra outra pessoa e não vai conseguir transmitir a alegria de ter feito algo simples, bom e funcional pra si mesma. 

Escrever é fluido, duro, fresco, bom, útil e tem gosto de amor próprio.  

quinta-feira, 3 de maio de 2018

Bobagem, né?



Que bobagem parar de escrever. Eu me arrependo 1030% todas as vezes que faço isso - mas só acontece depois que o tempo passa e eu vejo que não tinha necessidade de. E isso sobre qualquer coisa.

Tem dias em que eu estou totalmente certa sobre qualquer decisão que tomo (aliás, passo semanas assim). Sei exatamente o que quero ou devo fazer. Olho pra um objetivo e vou em frente, animadíssima ouvindo músicas do auge da carreira da Daniela Mercury (é, eu sei). E tem outros em que... nada disso faz sentido. Eu olho, penso, reviso tudo, coloco pingos nos is e: hum, não, não. Pra onde tudo isso vai, meu Deus?

Talvez eu apenas ache chato estar com tanta certeza o tempo todo. Quem sabe a minha insegurança não passe de um pequeno ato de rebeldia interna. Aquele lado da mente que não quer que tudo seja sempre igual: "Lá vai ela, com as certezas nas mãos e esse pescoço erguido e esses olhos míopes em direção a um horizonte azul e belo - bora lá jogar uma insegurançazinha pra bagunçar o coreto". Bem, uma mente que usa a expressão "bagunçar o coreto" de fato deve gostar de aprontar uns desaforos.

Mas é isso. Que bobagem parar de escrever.






domingo, 5 de março de 2017

Lisa (ou: nem tudo precisa ter um fim)


Esse texto é de 2010 e nunca foi terminado. Mas nem tudo precisa de um fim. 

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- É que você precisa saber que é um grande filho da puta.

Foi chorando só com o olho esquerdo que Lisa me deixou antes de fazer aquela besteira. Eu não achei que ela fosse dar cabo da ideia. Jamais imaginei que tivesse coragem, uma menina tão frágil. Quando a conheci ela estava arrumando a estante de livros da loja e eu perguntei se tinha Ana Karenina. E já começou me dando mais do que pedi desde aquele dia: a estante de autores russos fica ali. A parede toda, de cima abaixo, com obras raras e eu bobo de olhar aqueles livros de capa dura cheirando a poeira. Na ponta dos pés, ela só se concentrava em tirar e recolocar a pilha de livros de acordo com uma ordem que alguém devia ter estipulado, talvez o gordo careca e oleoso dono do lugar, que nunca me dava nem um real de desconto, podia ser a pior das velharias. O preço é o da etiqueta, era só o que ele sabia dizer. E botar aqueles discos dos anos 70 pra tocar o tempo todo.

Naquela época eu ainda comprava discos de vinis, andava pela cidade com eles debaixo do braço e parava pra tomar água ou cerveja no bar onde todo mundo ia pra conversar sobre o tempo, independente do tempo que fizesse. O caso é que Lisa não era do tipo que ia em bares, então como pra fugir do peso da ideia de que ela existia e estava ali tão perto e nunca iria se misturar a homens estranhos num beco, eu me deixava respirar ali o quanto eu precisava antes de seguir pra casa e pensar em como aparecer de novo naquele sebo no dia seguinte.

O Tilápia foi quem me mostrou que comprar livros usados podia ser bom, ficamos amigos trabalhando como lanterninhas no primeiro e único cinema da cidade. Ele dizia que o dinheiro não dava pra muita coisa, então fazia render comprando artigos usados: roupas, livros, discos e tudo mais que pudesse. Fui com ele uma vez na loja de livros usados e desde então virei fã da sensação de estar em um universo paralelo.

Naqueles anos a Lisa ainda nem devia sonhar que um dia carregaria um banquinho pra cima e pra baixo orientando pessoas a procurar autores pela ordem alfabética do sobrenome. E que teria de decidir se Paulo Coelho era literatura brasileira, autoajuda ou esoterismo. E que sonharia com montanhas de livros se acumulando sobre ela enquanto tentava se salvar como alguém que cai dentro de um silo cheio de soja e morre afogado. Soja e livros, o terror da garota, junto com filmes musicais, eu saberia disso muito tempo depois.

Mas eu ainda não conhecia Lisa e já disse isso antes, na verdade nem me lembro quem me atendia naquele sebo até então. Tenho uma vaga lembrança do gordo velho e seu bordão “é o que tá na etiqueta”.

O Tilápia me ensinou que trocar os livros era mais vantajoso do que pegar o valor em dinheiro, o preço era sempre maior pra quem trocava. Eu me divertia vendo que tinha conseguido meros três reais em algum livro que no dia seguinte já custava pelo menos oito, o preço escrito à mão em um adesivo sem vergonha que nunca saía, deixando aquela gosminha branca que depois ficava suja e estragava a capa do livro. Decerto pra gente ficar lembrando da cara suja do velho gordo e suado.
Enquanto isso, a Lisa ainda devia fazer segundo grau e andar pela cidade com uma mochila cheia de bottons, achando a palavra “anarquia” bonita e comprando pingentes que combinavam com pulseiras nas lojas daquela cidade com uma única avenida importante.

Aí eu saí do cinema e consegui vaga de caixa na sorveteria ali perto do sebo. Nenhum cliente me pedia desconto na casquinha, mas eu ficava só esperando pra dizer que o preço era o da plaquinha da parede.

E com um pouco mais de grana no bolso no final do mês já podia comprar livros novos e cds com encartes limpos, sem um infeliz ter assinado com “Luiz Lima 1998”, como sempre acontecia nos LPs. Mas aí o sebo já tinha virado uma diversão. E pra onde mais eu iria depois das cinco da tarde e onde mais eu ouviria Sá, Rodrix e Guarabira no fone de ouvido da vitrola, lendo gibis Tex sem ser incomodado? Era só gastar uns trocados toda semana e o velho nunca iria me cobrar nada, já que olhar na cara das pessoas pra ele parecia ser um problema desde sempre.

E andar com os bolachões dentro de uma sacola também já virara parte do hábito, gostava de pensar que eu era o cara dos discos de vinil andando pela cidade onde nasci como um homem à frente do meu tempo. É que as pessoas em geral tinham orgulho da modernidade e seus eletrodomésticos com mil funções, na época o CD player com espaço para cinco CDs ao mesmo tempo era o auge do avanço tecnológico. Eu só ficava pensando se tudo isso era preguiça ou necessidade, quem ia querer colocar cinco CDs e deixar tocando direto, se cada um tivesse pelo menos 40 minutos isso seria mais de três horas de músicas e você teria de continuar querendo ouvir sem mudar de ideia ou humor. A coisa bizarra que eu imaginava também era alguém colocando cinco gêneros musicais totalmente diferentes, só pra aproveitar o aparelho que foi comprado em doze vezes no carnê. Primeiro sertanejo que era a moda, depois pagode que também era moda, depois música clássica, depois rock pesado e depois sabe lá o que mais. E colocando no modo “repeat all discs”. Por três dias seguidos até o síndico reclamar ou algum vizinho resolver checar se você morreu de infarto fulminante e seu cachorro comeu seu braço esquerdo e o frango assado continua sobre a mesa. Não sei bem por que pensava isso, já que seria mais fácil pro cachorro comer o frango ao invés do braço.

A família da Lisa não devia ter essas coisas. Uma vez me contou que o pai quebrara a televisão num acesso de fúria e que agora ela tinha de comprar outra ou não ia mais poder ver MTV e os clipes que passavam de madrugada e assim, como poderia dormir? E eu imaginei uma garota nerd vendo televisão às três da manhã e que, diferente de mim, não perdia tempo com o Cine Privê, mas ficava entretida com pequenos vídeos de música alternativa. Ela gostar de TV de madrugada pra mim era um indício de anormalidade, tudo o que eu precisava pra me apaixonar por alguma garota, desde a Paula da terceira série que guardava as embalagens de biscoito na mochila e nunca jogava fora até a professora humilhá-la na frente dos colegas quando viu que a menina deixava rastros de wafer por onde passava.

Quando Lisa apareceu com um machucado na sobrancelha, eu tive cuidado pra não ser muito invasivo. Achei pertinente ela estar organizando a coleção de fitas VHS do Jet Li e aproveitei pra perguntar se, por acaso, ela fazia aulas de defesa pessoal. E que seria bom começar caso ainda não tivesse tido a ideia. Ela não sorriu na hora, mas depois tirou todas as fitas da terceira prateleira com um pouco de raiva e contou que não era má ideia e que havia quase batido no ex-namorado que tinha feito algo que eu não pude entender direito. E não importava mesmo já que naquele momento eu não consegui reagir ao fato de ela me dar bola e menos ainda ao fato de um cara ter feito qualquer coisa de mal pra Lisa. Tudo ficou meio escuro e eu fiquei pensando em como teria sido, a voz dela lá no fundo. “Aí eu disse pra ele que ia sair mesmo ele não querendo”. Eu só pensava em como ela não tinha chance de se defender e nem tinha alguém pra segurar o braço do cara pra trás e dizer: você é um filho da puta. E como eu não reagia a nada, nem à história e nem ao fim da organização das fitas do Jet Li, ela me olhou como quem olha para um estranho no meio da praça, deu de ombros e foi organizar os best-sellers na vitrine. Da inércia passei direto à ação: preciso comprar uma camisa pra ir à formatura de um amigo, você me ajuda a escolher? Me dei conta de que esse era o primeiro convite que fazia pra Lisa. Como aceitou, presumi que talvez quisesse me acompanhar também na festa do meu amigo, mas esta, como a maioria das previsões que eu faria depois sobre Lisa, estava errada. O não que ela me disse depois de sair da loja de camisas (eu com uma sacola de papelão na mão e uma vontade louca de beijá-la) foi simples e depois o ônibus chegou e quando pisquei ela já estava trocando uma nota de cinco com o cobrador e se sentando, um tchau meio sem vontade e o barulho do escapamento defeituoso e a fumaça na minha cara.

Meu pai tinha suas teorias sobre garotas e encontros. Uma garota que diz não no início é melhor do que a que diz sim logo de cara. Os ‘sims’ do começo geralmente são só uma máscara pra parecerem mais legais do que realmente são. Meu irmão dizia que você só é feliz com uma mulher dez dias por mês, que é quando ela não está na TPM, menstruada ou logo depois daqueles dias. E que isso se resumia a uma amostra do inferno pra qualquer homem normal. Bem, talvez eu não fosse um homem normal e me sentisse feliz absolutamente todos os dias com a Lisa, não importava seu humor, cara ou roupa que usasse. Nem a desculpa que me desse pra ir direto pra casa depois do trabalho ou pra não atender as ligações que eu fazia pra saber se tinha chegado bem. Não me importava nem com o cheiro de poeira que o cabelo dela tinha quando saía do trabalho, gostava quase mais do que do cheiro de shampoo que tinha quando eu buscava ela em casa pra ir comer uma porção de batata frita com maionese.

Duas semanas de encontros quase diários, depois - batata frita, discos, livros e ela reclamando do chefe e dos clientes-, eu contava sobre a cirurgia de catarata da minha avó quando ela parou no meio da calçada me olhando sério, mascando chiclete, e disparou à queima-roupa: quanto tempo mais vou ter que esperar até você QUERER me dar um beijo?



domingo, 5 de fevereiro de 2017

O tempo, o barquinho e a esperança de


Eu nunca me preocupei com a passagem do tempo e a idade e as coisas que supostamente devemos conquistar em determinados períodos da vida para sermos pretensamente bem sucedidos ou felizes.

Eu achava, basicamente, que bastaria viver e essas coisas chegariam ou seriam alcançadas de forma natural, de acordo com a convergência dos fatores e as pessoas que encontramos pelo caminho.

Já não estou mais tão certa disso.

Talvez a vida que importa só passe a ser vivida depois de encontrarmos algum tipo de foco no qual a gente passa a mirar para conquistar, um a um, todos os objetivos que criamos na nossa mente. Mas pra isso é preciso ter algum tipo de objetivo.

Objetivamente falando, só tem a mínima possibilidade de alcançar um objetivo quem sabe defini-lo (ou isso é só uma grande bobagem).

E apesar de parecer uma pessoa bem objetiva, sofro de subjetividade progressiva com tendências a divagações eternas e inconclusões paralisantes totalmente ridículas.

Por outro lado (e aí vem o oposto de tudo o que eu disse), também passo a me questionar sobre as coisas que forcei a barra para que acontecessem. As pessoas que eu não necessariamente encontraria ou me relacionaria se isso não dependesse basicamente do meu esforço, dos meus planos e da minha insistência com o universo. Passo a pensar se não é mais inteligente ficar parada, vendo o mundo girar, ao invés de ficar calculando rotas e traçando planos para realizar qualquer coisa.

Será que eu encontraria essas mesmas pessoas? Será que as conversas seriam as mesmas? Será que se eu parasse, já aos 16 anos de tentar ajeitar a vida dos outros ou me infiltrar nessas vidinhas tolas de alguma forma, eu seria hoje outra?

Ando um pouco cansada de ter de agir o tempo todo. Se a vida fosse o mar e meu presente fosse um barquinho, eu estaria nesse momento só deixando as ondas me levarem, cansada de usar os remos. Deitada, olhando pro céu enquanto ele muda do azul claro para o azul escuro, ganhando pontinhos brilhantes que depois desaparecem.

Ok. É só um período ou talvez a percepção de que não preciso me esforçar tanto o tempo todo (ainda que muitas vezes apenas mentalmente) para quase nada (exceto para o trabalho que me gera o próprio sustento).

Talvez eu esteja falando de pessoas. Talvez eu esteja falando da complexidade de se relacionar com elas. De criar uma história com alguém. De viver um romance.

Fiquei cansada de: projetar, explicar, esperar, definir, planejar. Ir em direção a. Oferecer explicações para. Tentar juntar os pedaços de. Desenhar um quadro com cores que não emocionam porque não basta a minha própria aquarela.

Fiquei cansada.

Mas ao mesmo tempo, tenho lá no fundo uma esperançazinha de: me deparar com, descobrir que, me surpreender sobre, imaginar que.

Aquela esperançazinha maldita de, um dia qualquer, recuperar a vontade de me levantar, olhar para as ondas e pegar os remos. E mirar em direção a. Para encontrar com. E experimentar se. Apesar de.

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Já dá pra ser feliz

"Você já é quem quis ser. Você já tem a vida que queria. Você já é, não precisa ficar lutando para construir sua própria personalidade, você já é quem sempre quis ser. Agora é só viver".

Das coisas que você fala pra outra pessoa, mas é pra você mesmo.


sábado, 26 de novembro de 2016

Guardar uma coisa é estar acordado por ela

Guardar
 Antonio Cicero



Guardar uma coisa năo é escondę-la ou trancá-la.
Em cofre năo se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa de vista.

Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.

Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.

Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que um pássaro sem vôos.

Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.